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Reforma ortográfica: apoio esta ideia!

06/05/2009

Quatro meses atrasado, eis-me finalmente aqui, para responder à posição do Pereira-Pereira sobre a reforma ortográfica – conforme sugestão de Fraulein Pretzel.

Antes de tudo, reconheço que a reforma peca em um ponto fundamental: ter sido imposta “de cima para baixo”. Sei que não se mudam línguas por canetadas. Mas discordo daqueles que fizeram, no início desse ano, da Reforma o inimigo da vez (agora, em tempos de gripe suína, ninguém mais lembrará dela – até 2012).

Todo o estardalhaço feito em torno da entrada em vigor do Acordo de 1990 (que não modificou nem 5% do vocabulário lusófono) só pode se justificar por uma razão: a preguiça dos atuais falantes de se adaptar às novas regras. Lembremos que esta não é a primeira reforma da língua portuguesa. Foram várias, ao longo do século passado – umas bem sucedidas, outras nem tanto.

Acredito que uniformizar a escrita da língua é fundamental para o reconhecimento internacional do português – claro, sempre preservando as nuances regionais (coisa que a atual reforma respeita, ao manter algumas diferenças entre o português afro-europeu e o brasileiro – por exemplo, “todos os apetos de um facto económico”)

Estabelecida a minha opinião, passo a rebater alguns trechos do Pereira (ele, em vermelho, eu em azul):

Sejamos sinceros. Essa reforma ortográfica é uma idiotice. Quem a formulou não sabe falar português; esqueceu que não é a ortografia da língua portuguesa que precisa de reforma e sim a gramática. (…) (…)

A gramática? Bem, é certo que algumas construções caíram em desuso, mas não vejo porque suprimir a imensa riqueza da gramática da língua portuguesa! Quer que regridamos a um estágio bárbaro tal qual o da língua inglesa – que quase nem conjuga verbos mais?

Vamos pensar um pouco. Vou pegar algumas palavras e línguas para comparar a pronúncia com a ortografia e fonética tradicionais do alfabeto latino nas respectivas línguas. (…) (…) (…)O terceiro exemplo é o francês, para mim a língua mais perdulária na face da Terra. Uma palavra como bonjour poderia ser escrita com cinco letras (”bonju”) ao invés das oito que tem, ou eau como apenas “o”; mais como “mè”; au revoir como “o revoà”. Outros exemplos não faltam. Evidentemente, o francês é uma língua que “desperdiça” muitas letras, tendo regras semi-definidas sobre como cada palavra deve ser pronunciada quando acompanhada ou não de vogais ou consoantes na palavra seguinte ou anterior. Isso é um horror de estudar, transforma a língua em um festival de exceções a regras excepcionalmente regulares, e por mais que francês seja muito charmoso/elegante na hora de falar (e de fato é uma língua bonita de se ouvir), é um INFERNO de escrever.

Aí entraremos em um mais profundo debate linguístico. Uma ortografia deve se aproximar da fonética ou da origem etimológica? Dá pano pra manga… Se o francês é um inferno para se escrever, é um paraíso para se ler – tantas as conexões etimológicas que se podem encontrar!

Considere, ainda, o seguinte: em uma língua tão complexa e diversificada como o português (com todos os seus dialetos e sotaques regionais), fica difícil dizer qual é a “pronúncia” correta, e, assim, estabelecer uma ortografia “padrão”.

Eu sempre considerei a língua portuguesa muito bonita quando bem falada porque ela, na enorme maioria das vezes, não desperdiça letras. Quando alguém fala “constituição”, todas as letras correspondem a algum fonema. Os diacríticos indicam exatamente qual é a entonação de tal letra, não há exceções a essa entonação, então um “ão” sempre terá o som de [ão] que conhecemos.

Em algo concordamos: a língua portuguesa (especialmente no dialeto brasileiro) soa mesmo muito bela! É vocálica e aberta, clara e sonora. Agora, data venia, “constituição” nem sempre é “constituição”. Se um carioca fala “aí, conXtituição”, um paulista fala “constituiçÃ-Ão, meu” e um lusitano dirá algo como “conxtituiçáo, pá”. Não há exata correspondência no som do “s”, tampouco do “ão”.

(…) De qualquer forma, percebam que havendo os diacríticos – como em colméia, conseqüência, idéia, cinqüenta – você sabe que há uma pronúncia específica que não tem como errar. “É” nunca terá som de “ê” na língua portugesa, em palavras nativas da língua. Pode haver diferenças de sotaque, como em qualquer língua há, mas os sons estão lá, há uma regra inteligente, e não há grandes problemas. (…)

De fato, “é” nunca tera som de “ê”, mas – e quando não há acento? Um sulista diz “espêcial”, mas um nordestino dirá:”espécial”. E por que acentuamos só algumas palavras e outras não? Por que dizemos “flôrescer”, mas pronunciamos “flóra”? Sabemos nosso hino de cór, mas dizemos que os negros são pessoas de côr. Não me parece uma regra muito “inteligente” –  é apenas uma convenção, que a gente vai aprendendo com o uso da língua.

Vamos pegar agora o inglês. Diferentemente do português, a relação ortografia-fonética não é muito clara. Diferenciar a pronúncia de duas palavras muito similares, como later (dita [lêider] por um falante do português) e latter [lédder], ou hear [riir] eheart [rárt], ou diferenciar quando “I” tem som de [ái] ou de [ii], salvo em casos mais específicos em que a pronúncia é uma questão de sotaque americano, britânico ou outro, não há regras muito claras para isso. Na enorme maioria dos casos, isso se aprende com a prática, mas em nenhum momento a própria palavra dá uma dica logo de cara; você tem que primeiro ter contato com a língua em si, ouvir alguém nativo falando a palavra como ela é dita. Como a língua inglesa usa diacríticos apenas para palavras importadas de outras línguas, muitas coisas acabam aparecendo por instinto, com o contato pleno com a língua na prática.

(…) (…) A eliminação de determinados diacríticos criou agora na língua portuguesa um problema que não existia na ortografia anterior. Agora apenas aqueles que tiverem algum tipo de convivência com a língua saberão que se pronuncia [idéia], e não [idêia]; [conseqüência] e não [consekência]. Se a idéia era facilitar o aprendizado da língua, como é que pode ficar mais fácil se agora não há como explicar a diferença de pronúncia apenas com base na grafia? Virou agora apenas uma questão de decorar a pronúncia, não há mais uma regra geral. Isso empobrece a língua. Ainda estou um pouco ambíguo em relação aos acentos diferenciais, admito, uma vez que sua aplicação era baseada em decorebas, e eu sou terminantemente contra decorebas.

Nesse ponto, me parece que você usou dois pesos e duas medidas. No caso do inglês, se aprende por “instinto”; no português, é um empecilho e “empobrecimento” da língua. Ora, o caso é exatamente o mesmo! São coisas que se aprende pelo contato – agora, se isso é bom ou mal, apliquemos a mesma valoração a ambos os idiomas!

Em alguns casos ele [o acento diferencial] realmente era necessário, ainda que fosse pra diferenciar palavras de classes diferentes; na frase “Pélo pelo pêlo”, que se tornou agora “Pelo pelo pelo”, há uma diferenciação de pronúncia, ao menos. Nesse caso o acento deveria ficar. Mas em outros ele não é necessário (ele tem, eles têm – o acento não faz diferença na pronúncia, e outra palavra já indica o número). Enfim, ainda aberto a discussões.

A maioria dos casos de acentos diferenciais era resolvida pelo contexto (mesmo assim, alguns mais problemáticos permaneceram). Agora… “pélo pelo pêlo”? Apelou! (tudumpá!) Quem em sã consciência dirá uma frase dessas?

Não vou entrar na questão da hifenação. Nunca soube hifenar mesmo, e a reforma também não ajudou a esclarecer nada. Pra mim, ou você hifena tudo (minha preferência, pois assim fica claro que é uma palavra composta) ou você não hifena nada (que pode tornar as coisas bem confusas em casos de falsos cognatos). Criar regras confusas para mudar as regras antigas também confusas não ajuda muita coisa.

Concordo que as regras ainda são confusas, mas melhoraram bastante. Está bem mais racional e intuitivo agora. Bem grosso modo, a regra geral agora é: junta tudo, exceto em alguns casos específicos (como repetição de vogal, unidades sinalagmáticas e alguns prefixos – pré, pró pós, além, aquém, recém e sem).

Ah… mas que eu gostava do charmr daqueles dois pontinhos em cima dos üs. Até 2012, agüente firme, lângüido trema! Grandiloqüente e inoxidável! Dentro da conseqüência mediováigel!

vivissecções

27/04/2009

a girafa de Lamarck:

este impulso tímido
este estado trágico
– estúpidos, banais –
de esperança estanque
despertar distante
ou pálido demais

o gato de Schrödinger:

um instante tático
um momento mórbido
trêmulos mortais
– mudos diletantes –
o sono dos amantes
ser e não ser mais

o cão de Pavlov:

tu na multidão
– paro, preso, súbito –
sei que não estás
conto até vinte
o sorriso contente
logo se desfaz.

a tartaruga de Zenão:

por que ser tão rápido?
pra que tanta lógica
tantos manuais?
ilusões da mente
– um fato evidente –
nunca chegarás.

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Este poema está publicado na Revista FNX XX da Academia de Letras.

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Obs: Para os que ainda não perceberam, o calendário do Boteco Barroco segue um ritmo ligeiramente diferente do Calendário Gregoriano. Ainda assim, hoje ou amanhã, devemos alcançá-lo.

Vermelho

18/04/2009

O dia todo, ninguém usava as escadas mortas da repartição, guardadas por pesadas portas corta-fogo. A preguiça preferia a longa fila dos elevadores que nunca chegavam – e que, quando vinham, eram os quatro de uma vez só. A paciência não se importava com o sorriso plástico das ascensoristas nem com suas cordialidades de autômato.

Nem preguiça nem paciência eram virtudes, eram só maneiras de passar o tempo. O expediente era o intervalo entre cama, café, ônibus lotado da manhã e ônibus lotado da tarde, jantar, cama. A semana eram cinco quadradinhos brancos na folhinha de calendário, separando dois quadrados coloridos de mais outros dois.

Ninguém usava as escadas mortas da repartição, até que tocava o sino esquizofrênico da catedral, que ninguém ouvia. Ao primeiro passo se somava o segundo, o terceiro e todos, descendo no trote apressado dos que fogem. Podia-se jurar que era incêndio, mas eram só seis horas. Os homens têm medo das seis horas – antigamente, rezavam pelos mortos, faziam sacrifícios de virgens ao deus sol que morria. Hoje, celebram o jubileu com alforrias cotidianas.

A rua, a liberdade, merda – está chovendo. De fato chovia, e o crepúsculo refletia, lá no alto dos edifícios, um arco-íris que ninguém viu. Vendedores ambulantes surgem de todos os bueiros, com suas sombrinhas descartáveis. São cinco reais, mas só quatro quarteirões. Segue em frente, os pés molhados, melados, o salto da sandália desbravando pequenos oceanos. O espírito de deus pairava, pisoteado, sobre as águas. Em frente, sempre em frente.

Até chegar a intransponível esquina, rio de carros furiosos. À primeira pedestre chegou o segundo, o terceiro e todos. Todos silenciosamente inquietos. Os carros deslizavam sobre as águas. O primeiro, de vidros negros, passou sem que vissem o motorista, que respirava pela décima vez o cigarro destilado pelo ar condicionado. Tivesse vidros translúcidos, não o veriam de qualquer forma. O segundo foi um ônibus, lotado. Merda.

A sandália de salto batia no mesmo tempo do sapato ao lado. E os olhos, sem querer, se cruzaram. Sem dizer nada, avançaram. Um passo, sob a luz vermelha. E logo se juntaram os segundos, os terceiros e todos. Buzinas, buzinas, merda. Mas ninguém ouvia.

Este conto está publicado na Revista FNX XX da Academia de Letras.