Peço desculpas por lhes ter feito passar fome nos últimos dias, caros clientes. Foi uma semana agitada para um internacionalista: Conferência sobre Mudança Climática, Abertura da Assembleia Geral da ONU e, para apimentar, a crise hondurenha.
Requento, pois, aqui, alguns comentários que fiz em blogs, egroups e twitter, sobre a polêmica questão do abrigo do Presidente Zelaya na embaixada brasileira em Tegucigalpa.
Do status de Zelaya
Para começo de conversa, o Brasil não concedeu asilo nem refúgio a Zelaya. Nossa embaixada abriga o Presidente legitimamente eleito de Honduras, o qual não apenas o Brasil, mas todos os países do mundo, reconhecem como Chefe de Estado. A ordem de prisão emitida por um governo ilegítimo e não reconhecido não tem o menor valor jurídico.
Qualquer violação à embaixada brasileira será considerada, nos termos do direito internacional, um ato de agressão.
Sem dúvida, o cerco militar, o corte de água, luz e telefone, bem como as demais táticas de cerco (estão tocando, em alto e estridente volume, o Hino de Honduras, há horas, em frente à Embaixada) são violações à Convenção de Viena e ao direito internacional consuetudinário, que determinam que o Estado anfitrião colabore com todos os meios necessários para o bom funcionamento da Missão diplomática.
Ainda bem que o bom senso prevaleceu e Micheletti já declarou que não violará nossa embaixada.
Da representação internacional de Honduras
A Suprema Corte (que rasgou a Constituição Hondurenha ao exilar Zelaya) não representa o país no âmbito internacional. Quem representa, legitimamente, o Estado hondurenho é seu Presidente, Manuel Zelaya.
A organização interna de um Estado não importa para as relações exteriores. A “intérprete da Constituição” pode ser a Suprema Corte, a Mãe do Presidente, ou a Faxineira do Paço Imperial — nas relações exteriores, o representantes sempre será o Chefe de Estado, seja ele Presidente, Príncipe, Rei da Cocada Preta ou Rainha de Copas. Se houve um golpe interno e tomaram — ilegal e ilegitimamente — o poder “de facto” do chefe do Executivo, isso não faz com que ele perca a condição de Chefe de Estado, a menos que os outros Estados reconheçam o “golpe” como uma legítima “revolução”. E isso não aconteceu no caso: nenhum dos quase 200 Estados da ONU reconheceu o governo Micheletti. Então, só resta a ele sentar e chorar.
Ingerência brasileira?
Só se pode falar em ingerência se o Estado estrangeiro não solicita ou não aceita a nossa atuação. Mas, ora, não foi o próprio presidente de Honduras que procurou a embaixada brasileira?
Por que o governo de facto respeita a imunidade de nossa embaixada, se não temos relações?
De fato, é uma questão curiosa, pois o governo ‘de facto’ de Honduras não tem relações diplomáticas com nenhum país do mundo. Na visão dos demais países, o regime de Micheletti não representa um Estado, não tem personalidade jurídica internacional, não tem direitos nem obrigações no âmbito internacional. Porém, Em busca de reconhecimento e apoio externo, Micheletti já garantiu que não vai violar a embaixada brasileira. O governo golpista se considera ‘legítimo sucessor’ do governo Zelaya, e, portanto, na sua própria ótica, ‘herda’ todas as obrigações internacionais do Estado Hondurenho. Isso inclui o respeito à Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas (da qual o Estado hondurenho é parte) e às normas costumeiras que garantem imunidade às Embaixadas.
Golpe de Estado ou deposição constitucional?
Preliminarmente:
Esse parecer do tal “advogado paulista Lionel Zaclis” parece-me um plágio DESCARADO de um relatório feito por uma consultora do Congresso Americano:
http://schock.house.gov/UploadedFiles/Schock_CRS_Report_Honduras_FINAL.pdf
Só pra citar um trecho:
(…) Em 23 de março de 2009, o presidente Zelaya baixou o Decreto Executivo PCM-05-2009, estabelecendo a realização de uma consulta popular sobre a convocação de uma assembleia nacional constituinte para deliberar a respeito de uma nova carta política.”
“(…) Em 8 de maio de 2009, o Ministério Público promoveu, perante o ‘Juzgado de Letras Del Contencioso Administrativo’ de Tegucigalpa, uma ação judicial contra o Estado de Honduras, pleiteando a declaração de nulidade do decreto (…).”
“On March 23, 2009, President Zelaya issued Executive Decree PCM-05 2009 ordering a public consultation (Consulta Popular, or referendum) throughout the national territory so that the Honduran people could express their opinion as to whether, during the 2009 general elections, a fourth ballot box should be installed at the polling stations to decide whether to convene a National Constituent Assembly for the purpose of drafting a new political Constitution. The same Decree gave a mandate to the National Institute of Statistics (INE) to take charge of the survey.11
On May 8, 2009, the Chief Prosecutor, acting as guarantor of the Constitution, filed a law suit before the Court of Administrative Litigation requesting that the Court declare the illegality and nullity of the administrative act carried out by the Executive Branch under the Executive Decree.12″
As conclusões a que chega e todos os argumentos são idênticos ao da consultora americana.
Quanto ao mérito, discordo da interpretação da Sra. Norma C. Gutiérrez, chupinhada pelo Lionel Zaclis.
1) Ela diz que a norma constitucional que estabelece a perda de mandato do presidente tem eficácia imediata. Eu acredito, sinceramente, que ela precisa de regulamentação. A Constituição de Honduras tem um caráter de proteção à democracia MUITO evidente, expresso, por exemplo, no Artigo 3º, ao dizer que “ninguém é obrigado a respeitar um governo usurpador ou qualquer pessoa que assuma funções por força das armas ou usando meios e procedimentos que quebrem ou desconheçam o que esta constituição e as leis estabelecem”.
Ora, se a Constituição NÃO estabelece um procedimento para a destituição do presidente, o uso arbitrário das Forças Armadas para tal fim é, a meu ver, violenta afronta ao preceito constitucional.
2) Toda a argumentação da Sra. Gutiérrez se baseia na falácia de que Zelaya, ao convocar uma consulta popular (o que está entre suas competências) para convocar uma constituinte, estivesse pleiteando a reeleição. De fato, é bem verossímil que Zelaya tivesse pretensões de se reelegar, à moda da escola bolivariana. No entanto, o mero fato de fazer uma consulta popular sobre uma Constituinte — e não sobre a reeleição, a meu ver, não se caracteriza como “apologia à reeleição”.
É como me parece.
Zelaya = Collor ou Jango?
Zelaya, diferentemente de Collor, não foi cassado segundo os trâmites legais da legislação hondurenha… Foi vítima de um golpe. A comparação melhor seria com João Goulart, em 64.
Do uso político da Embaixada
É complicado, de fato, usar embaixadas para fins político-partidários. Zelaya, reconhecido pelo Brasil e pelo mundo como presidente de Honduras, está lá abrigado, e tem falado com a imprensa e com seus simpatizantes, sempre com um discurso de promover o diálogo com o governo “de facto”. Ainda assim, foi advertido pelo Itamaraty.
Se ele estivesse provocando a violência, aí, corria o risco até de a Embaixada perder a imunidade. Devemos, sim, abrigar Zelaya — mas não se pode permitir que ele faça da missão diplomática sua sede de governo.
O Acordo de San Jose
O ideal é que ambas as partes aceitem o acordo proposto pelo presidente da Costa Rica e formem um governo de coalizão nacional. Seria uma volta de Zelaya à moda Jânio. Logo se fariam eleições e todos seriam felizes para sempre.
Sim, eu acredito em direito internacional, em fadas e duendes.
Uma última consideração
Em tempo: não sou um simpatizante das ideias de Zelaya. Acho que os oposicionistas de Honduras foram MUITO PRECIPITADOS E INCOERENTES ao articular esse golpe, faltando apenas 6 meses para ele deixar a presidência. Deviam ter esperado e ganhado de Zelya nas urnas.
Com toda essa patuscada, Zelaya passou de político corrupto chavista a herói da democracia mundial!